Nota preambular
A expressão “interrogatório clandestino” foi cunhada originariamente, no ano de 2020, em decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, como sinônimo de interrogatório informal realizado no local do flagrante e desprovido das formalidades legais, com afronta direta ao texto constitucional, nos casos em que, exempli gratia, não restou observada a advertência do direito ao silêncio. [1]
Partindo da perspectiva delineada, abordaremos no presente trabalho a hipótese de “interrogatório clandestino”, entrementes, em âmbito judicial, que se desenvolve com a “delação” do interrogando (também denominada de chamamento do corréu) [2], sem garantir a oportunidade de presença e de participação das defesas técnicas dos demais acusados no ato processual, em afronta ao artigo 188 do CPP e aos postulados constitucionais da ampla defesa — ou plenitude, no caso do júri —, do contraditório e da paridade de armas.
Nesse ínterim, tendo em vista a recente apreciação da temática pelo egrégio Superior Tribunal de Justiça, consubstanciada nos autos do RHC nº 167.077/GO, de relatoria da eminente ministra Daniela Teixeira, consideramos a relevância em discorrer a respeito, com o propósito de guiar a análise de futuros casos.
Chamamento de corréu em interrogatório judicial e garantia acerca da participação da defesa do réu ‘delatado’ no ato processual
Antes de imergirmos na contenda, faz-se necessário tecer considerações preliminares acerca do interrogatório judicial. Para tanto, iniciaremos realizando uma breve digressão histórica sobre a natureza jurídica do referido ato processual.
Em épocas passadas, durante a vigência de um processo penal de feição inquisitorial, o interrogatório era concebido como um mero meio de prova, uma vez que o acusado era considerado apenas um objeto do processo.
Contudo, a partir da promulgação da Constituição de 1988, o processo penal passou por revisões significativas, sendo adaptado aos novos paradigmas democráticos. Nesse contexto, inserido em um modelo acusatório, o acusado foi elevado ao status de sujeito de direitos, transformando o interrogatório em um instrumento de defesa.
A doutrina hodierna aborda o assunto, destacando a existência de três posições distintas, no tocante à natureza jurídica do interrogatório, que, conforme explicações de Gustavo Henrique Badaró [3], apresentam-se da seguinte forma:
“(1) é meio de prova, porque o CPP o coloca entre os meios de prova, (2) é um meio de defesa, mais especificamente de autodefesa, diante do direito ao silencio do acusado e (3) tem natureza mista, sendo tanto um meio de defesa, como um meio de prova.”
Entendemos que o interrogatório judicial consiste, efetivamente, em um meio de defesa, ao permitir que o acusado apresente a sua versão acerca da imputação criminal formulada na ação penal (autodefesa), sem que seja constrangido ou obrigado a fazê-lo (artigo 186 do CPP [4]).
Por outro lado, não afastamos a ideia de configurar também como meio de prova, inferência corroborada pela própria literalidade do texto processual penal, notadamente em virtude do tratamento dispensado ao aludido interrogatório a partir da Lei nº 10.792/2003. [5]
A começar pelo artigo 189 do CPP, ao assinalar que, “se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimentos e indicar provas”.
Depois, pelo artigo 187, § 2º, inciso II, do mesmo Regramento, ao prever que “não sendo verdadeira a acusação, se tem algum motivo particular a que atribuí-la, se conhece a pessoa ou pessoas a quem deva ser imputada a prática do crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou depois dela”.
Em uma análise mais acurada, a legislação está a considerar o interrogatório como um meio de prova, justamente por prever a faculdade de apontar as evidências, de elucidar os fatos e de imputar a terceiros a prática criminosa, no momento do ato processual, em caso de negativa da acusação.
De igual maneira, emerge a disposição contida no artigo 190 do CPP que destaca o seguinte: “se confessar a autoria, será perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas concorreram para a infração, e quais sejam”.
Isto é, o interrogando poderá “delatar” quaisquer outros acusados que figurarem no polo passivo da mesma relação processual (chamada de corréus), desde que confesse a acusação, sendo o interrogatório judicial, portanto, um meio de prova.
Em última análise, cabe ainda frisar o artigo 188 do CPP: “após proceder ao interrogatório, o juiz indagará das partes se restou algum fato para ser esclarecido, formulando as perguntas correspondentes se o entender pertinente e relevante”.
Spacca
Esse dispositivo legal, inquestionavelmente, assume uma preponderância ímpar no contexto da problemática aqui delineada. A sua redação permite inferir que o interrogatório judicial consiste, a um só tempo, em um meio de defesa e também de prova.
Enquanto meio de defesa, ancorado na salvaguarda do contraditório, é facultado às partes envolvidas (acusação e defesa), inclusive aos advogados dos demais litisconsortes penais passivos, se existentes, formularem perguntas ao término da oitiva do interrogando.
Por outro lado, como meio de prova, não subsistem dúvidas de que as respectivas respostas fornecerão elementos aptos a influenciar na apuração da verdade real por parte do julgador.
Assim compreende Renato Brasileiro de Lima, quando destaca que “com a entrada em vigor da Lei n° 10.792/03, e a consequente alteração do artigo 188 do CPP, o interrogatório passou a se submeter ao princípio do contraditório, possibilitando a interferência das partes”. [6]
Nessa ordem de ideias, sublinhe-se outrossim a doutrina de Aury Lopes Júnior:
“De qualquer forma, é estéril aprofundar a discussão sobre a “natureza jurídica” do interrogatório, como bem percebeu DUCLERC, pois as alternativas “meio de prova” e “meio de defesa” não são excludentes, senão que coexistem de forma inevitável. Assim, se de um lado potencializamos o caráter de meio de defesa, não negamos que ele também acaba servindo como meio de prova, até porque ingressa na complexidade do conjunto de fatores psicológicos que norteiam o sentire judicial materializado na sentença.” [7]
Com efeito, ao evidenciar que o interrogatório judicial desempenha tanto a função de meio de defesa quanto de meio de prova, não se deve subtrair a oportunidade de presença e de participação de quaisquer das partes nesse ato processual — sobretudo nos casos em que ocorre chamamento de corréu —, já que decorre a possibilidade de se concretizar o que dispõe o artigo 188 do CPP.
Do contrário, estar-se-ia a autorizar um ato processual contaminado por nulidade absoluta, por afronta direta às garantias constitucionais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia processual ou da paridade de armas.
É por tal razão que se deve censurar a realização de interrogatório judicial, cuja “delação” se sobressai, sem que tenha oportunizado iguais condições de presença e de participação a todos que compõem a relação processual.
Em arremate, importa dizer que, apesar de não considerar obrigatória a presença dos advogados dos corréus a todos os interrogatórios, o STJ já pacificou o entendimento de que, para restar observados os princípios destacados acima, faz-se indispensável oportunizá-la, a fim de tornar possível a formulação de perguntas ao interrogando. [8]
Decisão do TJ (RHC nº 167.077/GO)
Um caso peculiar alcançou a jurisdição do STJ, por meio de Recurso em Habeas Corpus [9],distribuído à ministra Daniela Teixeira, com a narrativa de que o magistrado de origem, ao designar audiência em processo cautelar criminal, com o fim de ouvir o réu preso antes de decidir acerca da revogação da prisão preventiva, teria promovido, na realidade, o interrogatório do mesmo, que contou, inclusive, com a chamada de corréu, sem que fosse viabilizada a presença e a participação do advogado do delatado, o que, segundo a defesa técnica, acarretaria em nulidade.
Apreciando a questão posta, a relatoria dos autos consignou que o conteúdo da audiência relacionado ao acusado preso “não se limitou aos fatos da sua prisão, pois ele acabou delatando os demais corréus, sem, contudo, a presença dos seus defensores”.
Também entendeu pelo acréscimo do propósito do ato processual, ao discorrer que “o juízo de primeiro grau não realizou o ato apenas para tal fim, pois, após análise do vídeo trazido pela defesa, verifico que o juízo sequer adverte o acusado de que a finalidade do ato é para análise da sua prisão”.
Ao final da decisão, restou declarada a nulidade do interrogatório, por violação ao princípio da plenitude de defesa e ao artigo 188 do CPP, valendo-se do fundamento de inexistir previsão para a produção da prova, sem a presença das demais defesas.
Quanto à configuração do prejuízo, a Relatoria asseverou ser evidente, “uma vez que uma prova foi produzida em desfavor do recorrente que, inclusive, foi condenado pelo conselho de sentença, no dia 09/11/2022, a pena de 16 anos de reclusão”.
Posto isso, antecipamos de antemão a nossa posição acerca da coerência técnica da decisão prolatada pela eminente ministra Daniela Teixeira que se insurgiu contra um método incomum, não só ilegal, mas, sobretudo, inconstitucional.
No caso em análise, é possível depreender que foi designada audiência em processo cautelar criminal, com o propósito de ouvir o réu preso, antes de decidir acerca da revogação da prisão preventiva.
Não obstante, percebe-se que a finalidade daquela audiência específica se transmudou em interrogatório anômalo, sobressaindo, inclusive, a chamada de corréus (“delação”), promovida pelo interrogando, sem que fosse oportunizada a presença e a participação das defesas dos demais acusados no ato processual em questão.
Diante disso, entendemos restar configurado o dito “interrogatório clandestino”, porquanto o ato processual se desenvolveu de modo informal, no momento da apreciação de revogação da prisão preventiva, com manifesto desvio de finalidade originária, não tendo contando sequer com a presença das defesas dos corréus delatados.
Em nossa avaliação, trata-se de nulidade absoluta, de sorte que o prejuízo é notadamente presumido.
A ilegalidade de interrogatórios judiciais de tal jaez não deve ser tolerada, sobretudo quando se evidencia o chamamento de corréus e não se assegura às suas defesas o direito de presença e de participação, com a possibilidade de formular perguntas ao interrogando, conforme previsão estabelecida no artigo188 do CPP.
Soa evidente que interrogatório dessa natureza, mormente da maneira como foi realizado, afronta diretamente os princípios da ampla defesa (no caso, plenitude), do contraditório e da paridade de armas.
Conclusão
Com o propósito de trazer a lume a modalidade ilegal do “interrogatório clandestino”, na esfera judicial, apresentamos a possibilidade real de sua ocorrência, que se perfectibilizou pela inobservância ao artigo 188 do CPP.
Tal desídia se manifestou na ausência de oportunidade a todas as defesas técnicas em participar do ato processual, que contou, inclusive, com a chamada de corréu, sepultando a possibilidade de formulação de perguntas ao interrogando.
Sob a nossa ótica, sendo o interrogatório judicial do réu um meio de defesa e também de prova, dada a sua submissão ao crivo do contraditório, entendemos que não se permite tolher a garantia prevista no referido dispositivo.
Assim como enfaticamente pronunciado pela eminente Ministra Daniela Teixeira do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do RHC nº 167.077/GO, compartilhamos o entendimento de que a ausência de oportunidade de presença e de participação dos defensores dos réus “delatados” no interrogatório judicial configura uma evidente transgressão a preceitos legais explícitos e a caros princípios constitucionais indispensáveis para o Estado de Direito.
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Referências bibliográficas
Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal – 9.ed.rev.,atual.e ampl. – São Paulo : Thompson Reuters Brasil, 2021.
Lopes Jr., Aury. Direito processual penal – 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016.
Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 7. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019.
[1] Brasil. Supremo Tribunal Federal. HC n. 186.821/SP. Relator: Min. GILMAR MENDES, julgado em 10/06/2020, DJe de 15/06/2020. Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1109914/false – Acesso em 18.03.2024.
Brasil. Supremo Tribunal Federal. RHC n. 170.843-AgR/SP. Relator: GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 04/05/2021, DJe de 31/08/2021. Disponível em https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur451882/false – Acesso em 18.03.2024.
[2] “A delação, ou chamamento do corréu, consiste na afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa.” Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal – 9.ed.rev.,atual.e ampl. – São Paulo : Thompson Reuters Brasil, 2021, p. 532.
[3] Art. 186 – Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
[4] Badaró, Gustavo Henrique. Processo Penal – 9.ed.rev.,atual.e ampl. – São Paulo : Thompson Reuters Brasil, 2021, p. 524.
[5] A propósito, veja jurisprudência de longa data do Supremo Tribunal Federal : “O interrogatório constitui meio de prova e também meio de defesa, este pessoalmente exercitado pelo réu.” (STF – Rel. Min. Antônio Neder – RTJ 73/758).
[6] Lima, Renato Brasileiro de. Manual de processo penal: volume único – 7. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: Ed. JusPodivm, 2019, p. 697.
[7] Lopes Jr., Aury. Direito processual penal – 13. ed. – São Paulo : Saraiva, 2016, p. 244.
[8] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 172.390/GO. Relator: Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 16/12/2010, DJe de 1/2/2011. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201000864176 – Acesso em 18.03.2024.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. RHC n. 54.650/RJ, Relator: Ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 5/5/2015, DJe de 15/5/2015. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201403291760 – Acesso em 18.03.2024.
Brasil. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 243.126/GO, relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 2/12/2014, DJe de 11/12/2014. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201201036730 – Acesso em 18.03.2024.
[9] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. RHC Nº 167.077/GO). Relatora: Ministra Daniela Teixeira, julgado em 29/02/2024, Dje de 01/03/2024. Disponível em https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.3&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=202202002329 – Acesso em 18.03.2024
Créditos ConJur
Conjur Revista Eletrônica