João Gilberto (1931-2019), o guru da bossa nova, protagonizou em Florianópolis um episódio que em tudo confirma sua notória fama de ranzinza, excêntrico e mal-humorado, nos palcos e fora deles. Mas, a considerar os relatos de quem testemunhou o ocorrido, o cantor e instrumentista que celebrizou clássicos como “Desafinado” e “Chega de saudade”, teve motivos de sobra para abandonar a plateia que assistia a seu show no Lira Tênis Clube, em junho de 1961. O som estava ruim, por causa da má qualidade do microfone (que abafava ainda mais a voz intimista do músico), e o público mostrou-se despreparado para apreciar um gênero que já se consolidara e que seria consagrado no Brasil e no exterior.
A única passagem de João Gilberto pela cidade não deixou muitos rastros – imagens e registros jornalísticos, por exemplo. Uma pesquisa rápida nos periódicos da época denuncia mais o empenho dos clubes sociais com a preparação das festas juninas que se aproximavam. Floripa era mais dada a aplaudir Cauby Peixoto, Ângela Maria e Elizeth Cardoso, astros populares da época, do que fazer silêncio em reverência ao tom de um virtuose, como João Gilberto.
Uma crônica publicada pelo jornalista Raul Caldas Filho, 83 anos, no livro “Sua majestade, o efêmero” (2017), traz detalhes impagáveis sobre o que ocorreu naquela noite de inverno e na manhã seguinte. O que não deu certo no clube os florianopolitanos puderam ver em dois botecos frequentados por boêmios e gente do povo que pouco sabia do grande músico baiano que o mundo aprendeu a admirar.
Ciceroneado pelo também cantor e compositor Luiz Henrique Rosa, catarinense que deixou seu nome marcado na história da bossa nova, João Gilberto acabou bebendo no bar Universal e dedilhando seu violão no Goiano, célebre reduto de feirantes, pescadores, peixeiros, balconistas, carroceiros e nativos em geral, que ainda hoje funciona no Mercado Público municipal.
“Antes da saideira, após provar uma ‘purinha’ no balcão, ele apoiou-se numa cadeira do vão central, tocou e cantou para uma plateia surpresa com a novidade”, conta Caldas Filho.
Foi quando muita gente desavisada ouviu pela primeira vez, e de graça, o artista que abriu as portas do mundo para a música brasileira. “Mas pra que tanta luz, pra que tanto sol…”, dizia a letra com que parafraseou, no raiar do dia, “Inútil paisagem”, de Tom Jobim e Aloysio de Oliveira. O número de curiosos cresceu, por conta de um espetáculo inusitado no ponto mais agitado da cidade.
“Pouco a pouco, mais pessoas se reuniam em volta do cantor, até se transformar numa consistente assistência”, lembra o jornalista. Ele então interpretou “O samba da minha terra”, clássico de Dorival Caymmi, foi muito aplaudido e deu por encerrada a sessão, voltando ao hotel com o violão a tiracolo.
‘Se não ficarem em silêncio, não posso continuar’
No Lira Tênis Clube, João Gilberto chegou na hora combinada – uma raridade para alguém tão impontual como ele – e começou a cantar as músicas mais conhecidas dos dois álbuns que havia gravado desde que a bossa nova se impôs como gênero predominante nas noites cariocas. Oficialmente, a Bossa nasceu em 1958, mesclando diferentes vertentes da música –do clássico ao samba-canção, passando pelo choro, pelo jazz e pelo blues. Naquele show, ele era acompanhado por Aldo Gonzaga, pianista ilhéu de alta qualidade, que todos queriam como parceiro.
Sócio do clube e membro da restrita elite que apreciava jazz em Florianópolis, além de ter informações sobre o que rolava na vida cultural do Rio de Janeiro, Raul Caldas Filho viu João Gilberto começar o recital interpretando “Desafinado” e “Chega de saudade”, seus maiores êxitos até então. O público manteve-se em silêncio, mas não demonstrou entusiasmo e os aplausos foram contidos. “Era uma música refinada demais para quem estava habituado a ouvir Maysa e Agostinho dos Santos, no próprio Lira e no Clube Doze de Agosto”, diz o jornalista.
Quando ele começou a tocar a terceira música, os cochichos e o zunzum foram aumentando, até virarem um burburinho que abafava sua voz sussurrante e a dicção perfeita. Ele reagiu: “Assim não dá… Assim não é possível. Se não ficarem em silêncio, não posso continuar.”
Após uma trégua, voltaram a agitação e o arrastar de cadeiras, com sócios do clube se levantando, insatisfeitos com o show. “Quando ele iniciou ‘O samba da minha terra’, a sua voz já não era mais ouvida”, lembra Caldas Filho. Ele interrompeu a apresentação e se retirou do palco, “deixando a alta sociedade local literalmente falado sozinha”.
No Mercado Público, um pequeno show espontâneo e gratuito
O show que não durou 40 minutos num dos clubes mais tradicionais de Florianópolis teve um segundo tempo na madrugada e na manhã seguintes. O Universal (que ficava na rua Jerônimo Coelho, perto do extinto hotel Querência), para onde João Gilberto e Luiz Henrique Rosa se dirigiram depois, era “um bar-restaurante nas proximidades do Mercado Público que congregava todas as tribos possíveis e impossíveis, de marginais, marinheiros e prostitutas a socialites, jornalistas e intelectuais”, conta Raul Caldas Filho. Era tão peculiar e atípico que nunca fechava e não tinha janelas – ali, independente da hora, o ambiente era sempre soturno e os fregueses chegavam a passar horas em seu interior, sem perceber que o dia já tinha nascido.
Pouco depois dos dois músicos, chegaram ao Universal Raul Caldas e outro jornalista, Ilmar Carvalho, que já era figura carimbada no Rio de Janeiro, embora também fosse um manezinho de primeira linha. João Gilberto não foi reconhecido pelos demais frequentadores e contou histórias, com seu jeito suave de falar. Fez referências à origem, em Juazeiro, na Bahia, e contou como foi parar no Rio, no começo da década de 1950. Depois, entrou no bar o pianista Aldo Gonzaga, que não falou do que ocorrera no Lira e aderiu às rodadas de cerveja, filés a cavalo e linguiças fritas com pirão d’água, uma das especialidades da casa.
O dia estava clareando quando a trupe saiu do Universal e alguém sugeriu uma “saideira” no Mercado Público. Foi ali, no bar do Goiano, localizado no vão central, que depois de um trago João Gilberto empunhou o violão, tocou e cantou sem as formalidades do clube social, rodeado por um público bem diferente – talvez uma das primeiras performances que fazia sem contrato, por prazer e pelo efeito da bebedeira que começara perto das 2h da manhã.
Depois desse episódio, Raul Caldas Filho morou no Rio de Janeiro, onde foi repórter da revista “Manchete” entre 1967 e 1968, e pode ver como a bossa nova – já então refluindo nas paradas de sucesso – tinha deixado pegadas na música brasileira. Muitos próceres do movimento estavam nos Estados Unidos, fazendo shows, gravando discos e fazendo a cabeça de Stan Getz e Frank Sinatra, enquanto os ecos se mantinham por aqui, convivendo com os tropicalistas, a ascensão de ícones como Elis Regina e a imposição do rock nacional.
“No cenário externo, a chegada dos Beatles acabou com a bossa nova, que vendeu muito até meados da década de 1960”, diz Caldas Filho. O jornalista não assimilou algumas mudanças drásticas na “Manchete” e, como bom manezinho que morre de saudades da terra, voltou a Florianópolis, onde trabalhou em “O Estado” e em órgãos do governo.
Cidade pequena e divertida, com bares para todos os gostos
A Florianópolis do começo dos anos 60 usufruía dos avanços proporcionados pelo governo desenvolvimentista de Celso Ramos, mas ainda era bastante provinciana e acanhada. Os jornais mesclavam notícias de agências internacionais com receitas de bolo (espaço patrocinado pelo fermento Fleischmann), listas dos aniversariantes do dia, colunas sociais e religiosas. Na edição de 23 de junho de 1961 do jornal “O Estado”, o Lira Tênis Clube chamava o público para a “tradicional festa de São João” do dia seguinte, que teria distribuição de pinhão, amendoim, laranja, quentão e rapadura, além da tradicional dança da quadrilha entre solteiros e casados.
As lojas Modelar anunciavam colchões e sofás e o cine Ritz exibia “Turbilhão de paixões”, com Rock Hudson e Cyd Charisse.
“A cidade era pequena, mas divertida, com os clubes sociais para a elite e bares como o Miramar para os boêmios”, atesta Raul Caldas Filho, então com pouco mais de 20 anos de idade. Ele era um dos raros frequentadores de uma loja na praça XV de Novembro, que vendia discos de jazz e bossa nova, onde jovens mais bem formados circulavam à vontade.
Como outros ilhéus, ele se beneficiava da prodigalidade de bares e points que caracterizava a cidade, como a Confeitaria do Chiquinho, o Alvorada, o Bossa Nova e o São Pedro, cada um com quitutes e drinques saborosos. O que poderia ter sido preservado daqueles tempos? “O Miramar não precisava ser demolido”, diz o jornalista. “Se tivessem feito o aterro na baía Norte, o centro histórico teria sido salvo.”
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