Repensando as Drogas
Fim da saidinha e criminalização dos maconheiros. Eis alguns dos desejos de boa parte da população — dita — de bem. Acreditam que essas medidas podem contribuir para melhorar o desolador cenário de violência e impunidade em que vivemos. Afinal, fumar maconha faz mal e leva o usuário à prática de outros crimes para sustentar o vício. A saidinha só serve para permitir que o bandido cometa crimes e retorne com drogas para dentro da prisão.
O regime é conivente e leniente com o bandido. Vivemos numa bandidolatria, isso sim! O superencarceramento é uma falácia contábil-ideológica que inclui na soma até presos em regime aberto para conseguir fechar a conta. Ora, preso em regime aberto nem preso é! Precisamos aumentar o tempo das penas, torná-las mais rigorosas, sem benefícios para indivíduos que não merecem. Prisão perpétua, pena de morte.
O discurso é conhecido, convence e ganha o voto dos incautos. Aliás, as eleições estão logo ali. O poder punitivo é irracional, tende a se expandir de maneira descontrolada ao ponto de destruir sociedades. O direito penal deveria funcionar como uma barreira de contenção dessa irracionalidade que move o desejo por vingança.
A Constituição estabelece no artigo 5º, XLVII, “b”, que não haverá pena de caráter perpétuo. De fato, não existe nas Leis Penais previsão de penas para o resto da vida do condenado. Todavia, a vedação constitucional à prisão perpétua não impede que os nefastos efeitos sociais e pessoais do cárcere acompanhem o egresso por todo o resto do que restou da sua vida. Basta um único dia preso e o estigma marcará o egresso mesmo após sua saída da prisão.
Pode ter sido preso por matar, estuprar, sequestrar, roubar ou por passar um singelo baseado pro amigo. Não importa, o rótulo de ex-presidiário vale para qualquer um que seja algemado e trancado na jaula. A marca dificilmente será apagada com o alvará de soltura, mesmo que seja pela absolvição transitada em julgado. Deixará rastros cruéis nos registros criminais, no imaginário social, na pele, na mente e na alma. O estigma é eterno.
Esse marcador irá se sobrepor a outros que caracterizam o perfil preferencial dos alvos da polícia e, consequentemente, os usuários do sistema de justiça criminal: jovem, negro, pobre, com baixa escolaridade e morador das periferias. Tais marcadores, só por si, dificultam o acesso e gozo de direitos fundamentais.
Antônio Cruz/Agência Brasil
Somados ao estigma da prisão, somente uma rede forte e articulada de serviços públicos e privados seria capaz de garantir ao egresso a desejada reinserção social. Ainda assim, eventual reinserção do egresso costuma ocorrer dentro daquele mesmo grupo de excluídos.
Há exceções
Reza a lenda que um jovem de elevada estirpe que ingressou nas carreiras do Ministério Público Estadual sem declarar ter feito uma transação penal por ter sido autuado por posse de maconha na mística São Tomé das Letras (MG) foi perseguido e não concluiu o estágio probatório.
Não se sabe se a perseguição foi por ter fumado maconha, por não ter declarado o fato, ou ter conseguido ser preso em São Tomé das Letras por fumar maconha! Fato é que, conforme a lenda, antes de ser exonerado do estágio probatório logrou êxito em ingressar nos quadros do MPF.
Em regra, as pessoas que ingressam no mundo do crime e que estão mais propensas a serem levadas à prisão fazem parte do extrato mais pobre da população. A expressão “too rich to jail” não é nova e nem exclusividade brasileira. Moradores de bairros periféricos sofrem desde tenra idade com a falta de serviços públicos que lhes garantam moradia, alimentação, educação, transporte, trabalho, cultura e lazer minimamente adequados.
As dificuldades de emprego e renda dos genitores — herança maldita dos séculos de escravidão — costumam refletir no enfraquecimento dos laços familiares. A distância do trabalho e a precariedade do sistema de transporte público reduzem a participação ativa de pais e mães na educação dos filhos. As escolas da periferia não atraem as crianças e adolescentes.
A necessidade de complementar a renda familiar consome o tempo de brincar e a disposição para estudar. A baixa escolaridade formal diminui oportunidades de emprego e renda. O troco recebido pelo bico mal paga a marmita, quiçá tratamento para a hérnia de disco. Não tem dinheiro para remédio, ansiolítico, antidepressivo. É proibido plantar “ervas que curam e acalmam, aliviam e temperam”. “A gente não quer só comida. A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor”.
Essas carências estruturais — e tantas outras não citadas — desestruturam qualquer família. Onde não há direitos humanos, difícil esperar humanos direitos. Um ambiente estéril em direitos fundamentais é fértil para a criminalidade. A violência se aprende e se ensina desde o berço, fruto do machismo que ameaça, agride, estupra e mata a mãe do próprio filho. Aumentar pena para lesão corporal contra as mulheres não querem. Para o legislador, é mais grave bater no cachorro.
Já os crimes sem violência têm origem na necessidade, desejo, vontade. Necessidade de comida para uns, vontade de ter um celular novo para outros, desejo de encontrar alguma felicidade ou amenizar a tristeza. Aumentar a pena para o grande sonegador não querem. Para o legislador, é mais grave furtar um celular.
Se a vida já não era fácil antes da prisão, dentro dela tudo piora. Ambiente insalubre, limitada atenção à saúde, alimentação precária, ensino pífio, isolamento da família e da comunidade são alguns dos fatores que tornarão a vida após o cárcere ainda mais difícil. Sequelas de doenças infectocontagiosas adquiridas na prisão para sempre na pele e no sangue.
Estigma
O estigma de ex-presidiário torna a reaproximação com a família e amigos complicada. O tempo afastado da convivência familiar e comunitária cria um vácuo onde as habilidades sociais não respiram.
Nem sempre a família aceita o egresso de braços abertos. Sem lugar para morar, as oportunidades minguam. Sem endereço fixo, obter documentos e emprego é mais complexo. A desconfiança da comunidade em relação às reais intenções de conviver harmonicamente em sociedade forma uma barreira invisível quase intransponível, ainda mais quando o vínculo com o mundo do crime não se encerra com o alvará de soltura.
ConJur
Por vezes há dívidas e favores que precisam ser honrados com os antigos companheiros de cárcere, sob pena de morte. Sem uma rede de apoio forte e articulada, e com tantos estigmas negativos para carregar, é fácil imaginar os motivos para os altos índices de reincidência.
O egresso, nos termos do artigo 26 da Lei de Execuções Penais, é “o liberado definitivo pelo prazo de 1 (um) ano a contar da saída do estabelecimento” e o “liberado condicional, durante o período de prova”. A lei prevê assistência para orientação e apoio à reintegração à vida em liberdade, inclusive mediante a concessão de alojamento e alimentação pelo prazo de dois meses.
Não é preciso ser estudioso do tema para constatar que dois meses de assistência não são suficientes para superar uma vida inteira de privações. Nem é necessário procurar longe ou por muito tempo para escutar que é absurdo o Estado pagar alojamento para o egresso enquanto há moradores de rua honestos e pacatos que não delinquem.
Aliás, há uma festejada publicação em que um ocupante de alto cargo público no sistema de justiça sustenta haver um humanismo sadio e outro falso e hipócrita [1]. Admito que foi tocante ler um privilegiado funcionário público para quem o Estado garante mais de 30 salários-mínimos líquidos a cada mês louvando a pureza e a mansidão de espírito daqueles seres pacatos que, submetidos a formas espoliativas de trabalho, alimentando-se precariamente, e vivendo em habitações subnormais, não se rebelam, não contrariam a lei e a moral, não delinquem.
Lembraram as palavras de dom Helder Câmara, para quem algumas pessoas seriam como a cana: mesmo postas na moenda, esmagadas de todo, reduzidas a bagaço, só sabem dar doçura. Para estas, o “humanismo sadio”. Ao que parece, exigir respeito às garantias constitucionais e legais — “prodigalizar benesses” — aos delinquentes seria um humanismo falso, hipócrita, doente.
Não deixa de ser uma boa estratégia para garantir a perpetuação dos privilégios que usufrui: dignifica-se a pureza da alma, apelando à religiosidade, para justificar as desigualdades e injustiças que desumanizam boa parcela dos brasileiros.
Criminalizar a maconha e dificultar as saídas temporárias não parecem ser o melhor caminho para as finalidades anunciadas. É necessário parar de perseguir maconheiros, os que compram e os que vendem, e priorizar a investigação de crimes que realmente importam.
Para reverter o triste quadro de violência, criminalidade e impunidade que vivemos, é preciso prodigalizar benesses para todos os presos e os miseráveis, sem distinção de raça, gênero, escolaridade e classe social. Enquanto optarmos por tratá-los como cana, ou nos contentarmos em colocá-los em cana, a porta do sistema prisional estará sempre girando para receber mais um egresso.
_____________________________
[1] O “humanismo sadio é o que se volta para o trabalhador pacato: para a faxineira e para a lavadeira (que não delinquem); para o balconista e para o ascensorista (que não delinquem); para o metroviário e para o bancário (que não delinquem) para o funileiro, o carpinteiro, o operário em construção (que não delinquem); para todos quantos se veem submetidos a formas espoliativas de trabalho, abrigam-se em sub-habitações, alimentam-se precariamente, vestem-se mal e não delinquem. Não delinquem, não delinquem, não delinquem, porque mansos de espírito, puros, dotados de boa índole. Falso e hipócrita humanismo é o que prodigaliza benesses aos que estupram, sequestram, matam e roubam – Junior, Volney Corrêa. Crime e Castigo – Reflexões Politicamente Incorretas. Campinas: Millennium Editora, 2002, p. 90.
Créditos ConJur
Conjur Revista Eletrônica