Em um país continental como o Brasil, é praticamente certo que em alguma região agrícola haverá estiagem na próxima safra, em maior ou menor grau. No ciclo atual, a estiagem está em Mato Grosso, a principal região produtora, enquanto em anos recentes as ocorrências foram no Sul do país.
Um grupo de pesquisadores tenta garantir que, quando e no local em que a seca chegar, a região atingida “esteja esperando” com um campo de testes de soja geneticamente editada para resistir ao estresse hídrico.
Nos experimentos já realizados em casas de vegetação pela Embrapa Soja, em Londrina (PR), a leguminosa editada teve aumento médio de 20% de resistência. Mas os índices oscilaram entre 5% e 35%, conforme variações dos dias, luminosidade e época do ano.
Se uma soja com esse atributo já estivesse no mercado, é provável que a quebra prevista nesta temporada em Mato Grosso – a pior da história, em torno de 20% – fosse significativamente atenuada.
As sementes que serão levadas para teste de campo estão sendo produzidas no ciclo atual no Norte do Paraná. São sementes de uma variedade altamente produtiva (até 3,5 toneladas por hectare) que tiveram o DNA editado pela técnica CRISPR/Cas9 (Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas), que imita mutações naturais na leguminosa que a torna mais resistente à falta d’água.
Soja resistente à seca precisa ser testada por duas ou três safras
“Precisamos ter a ocorrência de seca, por isso temos que testar por duas ou três safras. A ideia é conduzir os testes em todas as regiões produtoras de soja do país, em campos da Embrapa e de parceiros. Se não tiver seca, vamos ter que esperar”, aponta Alexandre Nepomuceno, chefe-geral da Embrapa Soja.
A perspectiva de seca, contudo, já está no radar do meteorologista Luis Renato Lazinski. Ele prevê a chegada do fenômeno La Niña a partir de maio, o que significa “irregularidade muito grande” nas chuvas no Sul e Sudeste do país. Mas como a soja é lavoura de verão, será preciso aguardar até o fim do ano para saber se o La Niña se estenderá.
Com o El Niño, presente hoje, as estiagens tendem a acontecer nas regiões produtoras do Centro-Oeste e do Matopiba, região formada pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
O sinal verde para que a empresa de pesquisa levasse adiante os experimentos da soja com DNA editado foi dado pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) no ano passado, mas só agora estão sendo multiplicadas as sementes para os experimentos em campo. A grande vantagem da técnica de edição genômica é que ela não é considerada transgenia, o que evita um longo e custoso processo de testes e licenciamento.
“Na Embrapa, temos transgênicos muito bons, de feijão, cana, eucalipto, mas que nunca foram para o mercado, porque o processo custa mais de US$ 100 milhões. Esta técnica (de edição do DNA) simula alterações que ocorrem naturalmente, é revolucionária e possui uma legislação mais assertiva”, aponta Nepomuceno.
Não se trata de “um cacto que produz soja”
Além da soja tolerante à seca, vão ser levados a campo, também, testes com sementes editadas para inativar um fator antinutricional da leguminosa, a lectina, como já mostrou reportagem desta Gazeta do Povo. Para desativá-la atualmente, a indústria precisa aquecer a soja. A ideia é desligá-la no DNA, retirando sua expressão nos grãos e facilitando a digestibilidade da ração animal.
O pesquisador é otimista quanto aos potenciais benefícios da tecnologia, ao mesmo tempo em que prega cautela, principalmente em relação às expectativas de uma “super soja”. “Quando a gente fala de seca, não podemos trabalhar com uma única ferramenta. Sempre brinco que não estou fazendo um cacto que produz soja. Nenhuma planta vai produzir se não tiver água. O que estamos fazendo é usar esse tipo de tecnologia para tentar reduzir as perdas”, afirma Nepomuceno.
Na safra de 2021, os três estados do Sul e Mato Grosso do Sul perderam US$ 15 bilhões por causa da estiagem. Metade da safra do Rio Grande do Sul e do Paraná não foi colhida.
Soja mais resistente precisa estar aliada a boas práticas
“Se em vez de perder 50%, eu perder só 20%, são 30% que estou ganhando. É importante mostrar esse patamar, porque US$ 15 bilhões que não entram na economia brasileira é dinheiro que não vai para prefeitura, para hospital, para escola, para comércio, para imposto”, afirma Nepomuceno.
“Essa tecnologia não vai resolver o problema, mas tem que ser usada com outras ferramentas, como o plantio direto, por exemplo, uma prática que deixa palhada no solo, preserva mais água e nutrientes. Tem que manter as curvas de nível e a rotação de culturas para o solo ter uma estrutura melhor. Não adianta ter uma planta com tolerância à seca e botar em um solo compactado. Temos que trabalhar com todas as ferramentas, essa é só mais uma. A briga vai ser feia com as mudanças climáticas”, prossegue o pesquisador.
Além das pesquisas da Embrapa, estão registradas na CTNBio uma série de experimentos de empresas privadas, como Bayer, Corteva e Syngenta, buscando desenvolver plantas editadas geneticamente para aumento de produtividade e resistência a pragas e doenças em outras culturas agrícolas, como milho, cana de açúcar e trigo.
CRISPR “democratiza” o uso da biotecnologia
Até recentemente, a União Europeia era a única região do mundo que ainda considerava que qualquer técnica de alteração genética deveria ser classificada como transgenia, posicionamento alterado em fevereiro do ano passado, em linha com o entendimento que é consenso nos Estados Unidos, Canadá, Japão, Austrália e Argentina.
Nos países em que a técnica está autorizada há mais tempo, já ocorre um aumento do número de pequenas e médias empresas atuando na área de edição gênica. Espera-se que o fenômeno se repita no Brasil, trazendo para o circuito universidades, pequenas e médias empresas. Um cenário diferente e mais “democrático” para a biotecnologia do que o das pesquisas transgênicas, que devido ao seu alto custo, até aqui acabaram se restringindo às gigantes multinacionais.
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